4 de abril de 2008

Foz Tua, Uma Barragem Contra o País

Editorial Jornal Público 25 Mar 08

Manuel Carvallho

Percorram a pé os três primeiros quilómetros do vale do Tua a partir da foz e digam se vale a pena afundar tudo aquilo para instalar menos de quatro por cento do actual potencial hidroeléctrico do país.

Há duas maneiras de olhar a garganta do troço terminal do rio Tua: ou se vê nas suas impressionantes escarpas de granito uma das mais belas e imponentes paisagens e a mais singular linha de caminho-de-ferro do país ou, apenas, um lugar ideal para se construir o paredão de uma barragem a custos reduzidos.

A EDP e a tecnocracia do betão que continua a dominar o processo de decisão das obras públicas em Portugal encaram o vale, obviamente, na segunda perspectiva. E seria difícil resistir-lhes aos desejos se a projectada barragem do Foz Tua fosse, de facto, indispensável para a sustentabilidade energética ou para o desenvolvimento de uma das mais pobres regiões do país. Mas, por muito que os estudos encomendados pela EDP apontem para taxas internas de rentabilidade do investimento muito elevadas, e ainda que seja irrazoável afirmar que não vale para nada, vale a pena recordar que legítimo interesse dos seus accionistas será longe de coincidir em absoluto com o interesse nacional.

Resta, por isso, a primeira opção: a barragem do Foz Tua é um erro porque vai submergir grande parte de uma paisagem de valor mundial e um dos seus mais importantes patrimónios ferroviários sem trazer grandes dividendos ao país.

Como já é hábito desde os duros debates sobre a barragem de Foz Côa, os argumentos que a EDP e o Governo usam para defender o Foz Tua não têm a ver com a sua utilidade real, mas sim com a sua vocação potencial.

Expliquemo-nos: do ponto de vista da produção energética, Foz Tua é irrelevante (potência instalada de cerca de 200 megawatts), vale até menos do que o reforço de potência das barragens de Bemposta e Picote (409 megawatts), mas a EDP advoga que a (pouca) energia que produz tem de se enquadrar numa lógica complementar à produção dos parques eólicos; do ponto de vista da vocação agrícola, Foz Tua serve apenas para destruir vinhas inseridas na região demarcada do Douro e olivais de uma das zonas mais aptas à produção de azeite de todo o país, mas alguns dos seus defensores alegam que servirá de reservatório de água para a irrigação, embora num raio de muitos quilómetros não haja nada para regar; do ponto de vista de abastecimento humano, Foz Tua está longe dos centros populacionais relevantes, mas, mesmo assim, quem sabe se numa seca milenar a sua água não dará jeito; finalmente, a barragem vai ser boa para o turismo, logo para a criação de empregos, embora seja ilógico acreditar que mais uma entre tantas albufeiras se pode substituir nessa vocação ao extraordinário vale natural que hoje existe.

Como em tantas outras vezes, a discussão em torno de Foz Tua (e de muitos outros projectos constantes nos planos de barragens do Governo) está saturada de mistificação e obreirismo. No caso, é fácil suspeitar que os engenheiros que a projectaram ou que se responsabilizaram pelo seu estudo de impacte ambiental olharam para o vale numa estrita perspectiva da economia colonial: se existe um recurso naquela fatia remota do país, há que explorá-la custe o que custar. Percebe-se: com tão baixo custo de investimento na construção (cerca de 200 milhões de euros), facilitado pela orografia da parte terminal do vale, Foz Tua deve ser um excelente negócio para os accionistas da EDP. Já não se percebe como é que os responsáveis do Ministério do Ambiente ou o próprio primeiro-ministro considerem que a barragem é um activo importante para o país.

Com os autarcas da região (com a notável excepção do de Mirandela) a trocarem um património exclusivo por mais um lençol de água e lama, de pouco hão-de servir os apelos, as dúvidas, os protestos de instituições públicas como a comissão de coordenação regional, de organizações ambientais ou da sociedade civil, de especialistas em Energia e Ambiente, ou de cidadãos que conhecem o Tua e o sabem colocar numa hierarquia de paisagens de valor mundial. Foz Côa e a convicção de que há barragens boas e barragens más já aconteceram há mais de uma década. A exigência de que os grandes projectos devem ser avaliados numa lógica de custo-benefício para a colectividade e não apenas pela criação de valor que os seus promotores antecipam está a perder fulgor. Para qualquer cidadão interessado no património do seu país, porém, é fácil tomar partido: percorrem a pé os três primeiros quilómetros do vale a partir da foz e digam se vale a pena afundar tudo aquilo para instalar menos de quatro por cento do actual potencial hidroeléctrico do país.

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